sábado, 27 de dezembro de 2008

UMA PROPOSTA DIFERENTE


Há uns quatro anos, no Ateliê Literário (uma oficina literária aqui em Brasília), ocorreu-me o insight de uma nova forma de escrever, resultando numa tentativa de aproveitar ao máximo cada frase, cada palavra, cada sílaba, cada letra, enfim. Um condensação extrema, numa pretensa potencialização da linguagem. Escrevi então, testando a tal técnica, o miniconto (míni mesmo!) Joyce in Sampa, narrando uma imaginária estada do escritor irlandês James Joyce em São Paulo. Não passava de uma brincadeira, um simples exercício. Para minha surpresa, no entanto, o texto teve excelente aceitação tanto pelo coordenador da oficina, o prof. Piero Eyben, como pelos colegas da minha turma. Acho que estavam cheios de meus outros textos... Então, para se verem livres deles, me incentivaram a investir na novidade. Animado - e ignorando essa possível e dissimulada intenção de meus colegas -, escrevi mais um miniconto (menor ainda que o primeiro), O/mar, que considero aquele em que melhor aproveitei a nova técnica, e "traduzi" para esta um outro conto curtíssimo, Um e outro, escrito originalmente na técnica "normal".

O curioso é que, não havendo nada semelhante na prosa (pelo menos que eu saiba), descobri uma utilização muito semelhante na poesia. Aliás, foi o Piero quem percebeu a semelhança e, para confirmá-la e me fornecer parâmetros para um aprofundamento da técnica, apresentou-me alguns poemas do poeta norte-americano e. e. cummings (Edward Estlin Cummings - a grafia em minúsculas foi popularizada por seus editores, como referência à sua sintaxe inusual) traduzidos (ou "transcriados") pelos irmãos Campos, notáveis poetas e tradutores. Outra coincidência é que o cummings - de quem eu conhecia tão-somente o poema Nalgum lugar, também traduzido por um dos Campos, o Augusto, e musicado pelo Zeca Baleiro (está no cd Líricas, uma belíssima canção) - morreu exatamente no ano do meu nascimento, 1962.

Resolvi trazer para este blog os dois primeiros minicontos a que me referi (anteriormente publicados no blog literário www.maldemontano.wordpress.com/category/contos), para que os leitores avaliem se vale a pena investir tempo e neurônios nessa, digamos, "possibilidade lingüística". Agradeço as críticas e/ou sugestões que porventura ocorram, sempre bem-vindas nesse processo que exige uma participação ativa do leitor, tanto para encontrar a forma de leitura como para balizar-me quanto à viabilidade de tal técnica.




JOYCE IN SAMPA


Acordo ced[o]/(ento). O corpo [de] amar/(elado) arfa, nu/lo. Gira a cabeça gira o quarto gira o mundo gira. Maldito gim! Era r/um (?) ou outro r[u]im dói. Um co[r]po d'á(gua): um porto. A mulher púbia em pêlo me ignoja. Dor/me. Eu [a] quero[,] (ir) embora. Meu desespelho se reflete no banheiro. Vasomito silente, des/ca(r)go. Saio pé-antipétala. Ela sozinhando (comi[go]?). Tropeço na sã(/Dália [me])dice. Talvez volte a ti[e]te(r). Rio de nós. Tal vez em que nos encontramos: des/tino.

Saio à rua[,](:) rot[o]/(a). In Sampa. Carros carram, velhozes. Nuvens nuvem: limites. Nu vem e vai, (na) mente. Pessoas pessoam: pés/sonham. E/difí[l](os)? Muito(s). Verbos vermem, in-signos. A (c)idade não pára. Eu si[m]/g(n)o. Preciso de ir lá.

Anda.


Brasília, 11.1.2005




O/MAR


"Aflige ver de repente as pessoas na praia
transformadas em pequenos riscos de carvão."
(Rubens Figueiredo - Barco a seco)



O/mar vê: [a] pres(s)a (de) entrar. No horizonte, [a]riscos[,] (de carvão ba)lançam-se(: b)arcos. En/canto de ser/eia. (A)Trai[,] O/mar.

A onda anda a onda anda a onda anda a onda. Ao longe, [a]riscos[,] (de carvão:) corpos ao s[o](a)l, b(and)eira do cais.

A mãe (se des)espera. Nada. Grita: "O!mar!"

A onda anda a onda anda a onda anda a onda anda. Onde? "O!mar!" Nada. "Salvem!"

Sal vem. Nos olhos de/la. Na garganta de cá.

[A]Braço(s) forte(s). Luta de(s)/igua(l)[is].

A mã[e](o): a[!]deus.

Omar: o mar.

UMA FOLHA CAI...

Aqui um poema do e.e. cummings. A frase "uma folha cai" é considerada pelo tradutor e poeta Augusto de Campos uma das imagens mais profundas da solidão (ou solitude, na tradução do próprio Campos). É notável a repetição da unidade - simbolizando o ser sozinho -, tanto em numeral, valendo-se da semelhança com a letra "L" minúscula, quanto em palavra ("one"). Verifica-se o uso da tmese, ou seja, corte de palavras com intercalações. Há que destacar ainda as soluções criativas do tradutor.

l(a

le

af

fa

ll

s)

one

l

iness

(e.e.cummings)

so

(l

f

o

l)l

(ha

c

ai)

itude

(Tradução: Augusto de Campos)